A
Democracia, os Políticos e os Idiotas[i].
João
Crispim Victorio[ii]
“Vendiam suas propriedades e seus bens e repartiam o dinheiro entre todos, conforme a necessidade de cada um” (At. 2,45).
“Um homem chamado Ananias fez um acordo com sua esposa Safira: vendeu uma propriedade que possuía, reteve uma parte do dinheiro para si e entregou a outra parte, colocando-a aos pés dos apóstolos” (At. 5, 1-2).
“Então o sumo sacerdote, com todo o seu partido – isto é, o partido dos saduceus, - ficaram cheios de raiva, e mandaram prender os apóstolos e jogá-los na cadeia pública” (At. 5, 17-18).
Provavelmente o livro dos Atos dos Apóstolos foi escrito entre os anos 80 e 90 d.C. Este livro relata as atividades e as várias perseguições sofridas pelos cristãos originários que começa sob o domínio de Nero, em 67 d.C, logo depois por Domiciano, em 81 d.C. Estas perseguições se sucederam por mais de um século quando Diocleciano ascendeu ao trono imperial em 284 d.C e tem início a décima perseguição aos cristãos sob seu domínio, em 303 d.C. É durante essa conjuntura conturbada que o mundo sofre uma primeira grande divisão, ou seja, a partir daí temos o Ocidente e Oriente. A palavra oriente vem do latim oriens, ‘o sol nascente’ e a palavra ocidente vem do latim occidens, ‘o sol poente’. Ou seja, são pontos de orientação do Sol. O lado ocidental é a região oeste do polo da Terra, onde o Sol se põe ao fim do dia e o lado oriental, é a região leste, lado do horizonte onde o Sol aparece pela manhã. Essa divisão ocorreu devido aos conflitos vividos pelo Império Romano. Diocleciano, para evitar o agravamento da crise que vinha passando, resolveu reorganizar a estrutura de poder dividindo o império em dois: o do Oriente, com capital em Constantinopla, posterior Império Bizantino[1], e o do Ocidente, com capital em Roma.
Podemos, então, dizer que o Mundo Antigo, dominado
pelo Império Romano, mesmo sofrendo influências da Grécia com sua forma de
organização social democrática, era extremamente autoritário. Mas também vemos,
por meio dos relatos dos Atos dos Apóstolos, que isso não impedia que os judeus
e, particularmente os judeus adeptos do cristianismo, se organizassem com
objetivo de tornar a vida um pouco melhor. Foi por acreditarem na possibilidade
da transformação social, uma nova sociedade justa e fraterna, construída por
todos e para todos sob os princípios cristãos, que muitos foram perseguidos e
mortos.
Temos aqui algumas questões que são intrigantes e
incompreensíveis, até mesmo para nós nos dias de hoje. Notem que desde a
Antiguidade o ser humano vem buscando meios de sobrevivência onde pese uma
organização social que seja satisfatória, a princípio deveria ser o melhor para
todos. No entanto, o que pode ser observado é que nem todos endentem isso e por
isso não se envolvem ou se comprometem com as lutas sociais, são mesquinhos,
individualistas e egoístas, a esses chamamos de despolitizados ou de
“analfabetos políticos”, segundo Bertolt Brecht[2]. As consequências é o
fortalecimento do poder hegemônico dos mais abastados, dos donos do capital.
Por outro lado temos os politizados, aqueles que entregam a própria vida em
prol dos outros, do seu próximo, por acreditar na força que provem das ações
coletivas e democráticas, capazes de transformar para melhor a sociedade.
Mas afinal o que é democracia? Segundo sua origem
na Grécia Antiga, (‘demokratía’; ‘demos’: povo + ‘kratos’: poder): significa o
poder exercido pelo povo. A democracia surgiu na Grécia num momento de crises e
conflitos, que não foi de tudo ruim, já que, o momento foi marcado pelo
surgimento das Cidades - Estado[3], modelo que previa uma efetiva participação
política dos cidadãos, a chamada democracia direta. O governo era realmente
exercido pelo povo, que fazia reuniões em praça pública para tratar dos
assuntos e problemas, as decisões eram tomadas em assembleias públicas. O
crescimento populacional dificulta as reuniões em praça pública e então surge
uma nova forma de se organizar, a democracia representativa, onde o povo se
reúne e, por meio do voto, escolhe os representantes para tomar decisões em seu
nome. Este, inclusive, é o processo mais comum de tomada de decisão nos
governos democráticos.
Sendo assim, podemos concluir que todos os cidadãos
eram políticos na sociedade grega? Claro que não. Primeiro, na Grécia Antiga
não eram considerados cidadãos os escravos, as mulheres e os estrangeiros,
então, se são excluídos como cidadãos, não participam da vida política.
Segundo, vamos saber qual o conceito de político para os gregos:
(‘poli’:pólis/cidade + ‘tikós’: bem comum): aquele que pensa no bem comum, que pensa
nos outros, na Pólis, no público. Ou seja, é aquele que se interessa e se
preocupa não só com seus interesses particulares, mas com os interesses de
todos. Sabemos que todo homem é um ser social, pois vive e se realiza em
sociedade. Então parece óbvio que todos deveriam se interessar pelos assuntos
do Estado, já que são assuntos de todos os cidadãos. Infelizmente nem todos
endentem a importância disso e se omitem, se acovardam ou mesmo ignoram sua
participação, abrindo mão dessa maneira, de um direito fundamental a ser
exercido, deixando que outros decidam por ele.
Naquela época os gregos criaram os termos
“politikós” e “idiótikos”. O primeiro faz referência aos cidadãos que se
interessavam pelos assuntos da Pólis. O segundo faz referência aos cidadãos que
não se preocupavam com os assuntos da Pólis. Mais adiante, seriam chamados de
“idiotes” ou “não consciente das artes”, séculos mais tarde na nossa palavra
atual: idiotas. A palavra idiota (‘idios’: pessoal, privado): significa aquele
que se preocupa somente com si mesmo, com seus interesses privados, sem prestar
atenção aos assuntos públicos, de todos. Então, podemos concluir que idiotas e
políticos são opostos por existência desde a Grécia Antiga.
No Brasil, a democracia vem sendo construída a
passos lentos. Nosso sistema democrático é o representativo e tem caráter
efetivo a partir do final da ditadura civil-militar, em meados dos anos 80.
Sendo assim, é um sistema relativamente novo, mas já carregado de muitos
conflitos entre os movimentos de esquerda, que queriam a abertura política,
anistia para os exilados e eleições diretas para presidente da República, e os
de direita formados ainda com base nas velhas oligarquias agrárias, por
políticos profissionais de carreira, médios e grandes empresários, banqueiros e
militares, que queriam a qualquer preço assumir o poder político do país. Esses
movimentos vão, um pouco depois, dá origem aos partidos políticos de esquerda,
de centro e de direita.
Os partidos que compõe o bloco de esquerda e os que
compõem o bloco de direita são fortemente caracterizados e os políticos que
formam o último, diferentemente dos políticos que atuavam no sistema grego,
preocupando-se com a Pólis, esses não trabalham na expectativa da construção de
um Estado para todos. Trabalham, sim, para manter seus feudos ou currais
eleitorais, para seus próprios interesses privados e pensam somente em si
mesmos. Não respeitam os poderes da República, pois acreditam poder fazer o que
quiserem, tornando nosso país numa terra onde se faz leis. Mas, no entanto, as
mesmas não são cumpridas por uns poucos que se acham acima delas. Isso nos leva
a acreditar que vivemos uma cidadania teórica, sem muito reflexos práticos na
nossa vida de cidadãos.
Mesmo nossa democracia sendo jovem, temos
conquistas importantes, mas temos muito que amadurecer, particularmente em se
tratando de nossa cultura política. Porém, o nosso problema não é só os
políticos mal intencionados. Temos uma população muito grande de pessoas que se
preocupam somente com si mesmas, com seus interesses privados, sem prestar
atenção aos assuntos públicos, de todos, ou seja, temos no Brasil muitos
idiotas, no sentido original da palavra. Desse jeito, o Estado não vai
funcionar como deveria, não vai oferecer serviços básicos de saúde, lazer, segurança,
emprego e educação de boa qualidade para todos. Todos esses serviços são
primordiais para se viver bem em sociedade. Nós precisamos, assim como os
primeiros cristãos, ter esperança na vitória da democracia e na organização
coletiva dos cidadãos. Para tanto, a educação, a meu ver, é a principal
trincheira nessa luta, pois acredito ser por ela a solução para todos os nossos
males.
Rio de Janeiro, 27 de março de
2016.
[1] O Império Bizantino foi um dos impérios mais importantes da história. Nasceu no século IV quando o Império Romano dava sinais da queda de seu poder, principalmente por conta das invasões bárbaras nas suas fronteiras. Diante de tantos problemas, o Imperador Constantino transferiu a capital do seu império para a cidade do Oriente, Bizâncio, a qual mais tarde passou a ser chamada de Constantinopla.
[2] Eugen Berthold Friedrich Brecht, nasceu em
10/2/1898, em Augsburg, Alemanha e morreu em 15/8/1956, Berlim, Alemanha) foi
um poeta, romancista, dramaturgo e teórico renovador do teatro moderno de
nacionalidade alemã.
[3] A situação política a partir de 900 a.C, com a
invasão da Grécia pelas tribos dóricas, foi marcada pelo surgimento das cidades
- Estado, modelo que previa uma efetiva participação política dos cidadãos. O
aparecimento da polis foi preponderante para as primeiras investigações
filosóficas sobre o mundo natural, característica dos filósofos pré-socráticos,
que buscavam a arché em elementos da natureza. A essa altura, com a crescente
secularização da sociedade grega, os mitos deixavam de ser o eixo central das
explicações sobre o mundo.
[i] Cortella, Mario Sergio; Ribeiro, Renato Janine. Política para Não Ser Idiota – PAPIRUS.
[ii] Professor, Especialista em Educação e Poeta. Membro do CEBI-RJ/Sub-regional Campo Grande.