Miriam, uma história de luta do povo hebreu.
João Crispim Victorio[i]
Nos relatos Bíblicos[1] é comum encontrarmos, de maneira destacada, personagens masculinos, homens que foram instrumentos de Deus na caminhada e na preservação do seu povo. Mas existiram também as personagens femininas e, entre muitas, destaco aqui Miriam, por sua fé e capacidade de liderar, junto com seu irmão Moisés, a saída do povo hebreu da escravidão do Egito. Miriam, após a libertação do povo hebreu[2], foi uma grande líder durante a travessia no deserto, foi orientadora, animadora e consoladora entre as mulheres. Sofreu com a hanseníase (lepra) por ter ofendido a Deus e a Moisés, mas percebeu seu erro, arrependeu-se e viveu ainda por muitos anos cumprindo seu papel de liderança entre os seus.
São nos textos do Antigo Testamento[3], mais precisamente no Pentateuco[4], com exceção do livro de Gênesis, que vamos conhecer a história de Miriam e do povo hebreu. Povo que se distinguiu de outros da antiguidade por sua crença no Deus único, crença que veio depois influenciar o judaímos, cristianismo e islamismo. Os hebreus, inicialmente, eram um grupo de pastores nômades, organizados em tribos formadas por pequenos clãs[5], chefiadas por patriarcas. Os principais patriarcas foram Abraão, Isaac e Jacó, também chamado Israel. Os hebreus deixaram a Mesopotâmia e se fixaram na Palestina, uma pequena faixa de terra, que se estendia pelo vale do rio Jordão. Viveram lá durante três séculos. Mas uma terrível seca atingiu toda a região obrigando-os a sair em busca de melhores condições de vida. Assim chegaram ao Egito[6].
Nas terras do Egito, os hebreus foram recebidos por José, o filho de Jacó e Raquel (Gn 30, 22 - 24), que por ironia anos antes fora vendido por seus irmãos como escravo aos mercadores ismaelitas e, esses, tempos depois o vendiam aos egípcios (Gn 37, 1 - 36). José conquistou a confiança de Potifar, o oficial da corte do faraó e chefe da guarda pessoal, que o comprou e com o passar do tempo tornou-se homem de confiança do Faraó (Gn 39, 1 - 6). Durante esse período os filhos de Jacó entraram no Egito e se multiplicaram tornando-se cada vez mais numeroros, a tal ponto que o Egito ficou repleto deles (Ex 1,7). Os faraós, que vieram pós José, passaram a limitar o crescimento do povo hebreu. Então os egípcios obrigavam os hebreus ao trabalho duro, tornando-lhes amarga a vida (Ex 1,13-14). Outra medida para conter o crescimento do povo de Israel foi ordenar as parteiras que matassem todos os meninos recém-nascidos (Ex 1, 22).
Nesse contexto, surge a figura de Miriam, irmã mais velha de Arão e de Moisés. Ela, ainda uma menina, vigiava o cesto colocado a propria sorte por sua mãe na margem do rio Nilo. Dentro estava seu irmão Moisés, fora escondido ali para evitar sua morte pelos soldados do faraó. Miriam, esperta, vê que o cesto é recolhido pela filha do faraó. Então, logo se apresenta oferecendo-se para ir buscar uma hebréia para cuidar do menino e chama a mãe (Ex 4, 1 - 10). Graças a esta mulher, que viveu toda sua vida em prol de sua família e seu povo temos hoje essa história cheia de conflitos, mas também de amor, companheirismo e solidariedade, verdadeiras lições de vida. Assim é a história de miriam e de seu povo.
Mas é bom também lembrar-mos que no Antigo Testamento encontramos histórias de outras personagens femininas como Sara, Rebeca, Lia e Raquel, as chamadas matriarcas, mulheres que estiveram sempre em posição de liderança na formação da consciência do povo hebreu. A essas mulheres podemos incluir Débora, Ana, Rute, Judite, Ester, entre outras, que foram capazes de impulsionar com sabedoria e ao mesmo tempo com autoridade as forças de resistência do povo, mas que nas interpretações machistas dos textos estiveram sempre em segundo plano. Assim foi, também, Miriam. Mulher forte e de carater que ainda criança se ocupou dos problemas de injustiças que seu povo sofria em terras do Egito. Cheia de esperanças e confiança em Deus, juntou-se a seus irmãos Moisés e Arão na condução da grande marcha do povo hebreu para a libertação da escravidão no Egito (Mq 6, 4), rumo a Terra Prometida.
Miriam possuía muitos dons, como o da poesia e da música (Ex 15, 20 - 21), sendo assim, teve fundamental participação durante o êxodo[7] na organização do povo nos momentos de confraternização tocando, cantando e dançando. Não media esforços para ajudar a solucionar problemas, fossem eles dos mais simples aos mais complexos. Por isso, no reconhecimento do povo, sua liderança estava apenas abaixo de Moisés e de Arão, apesar da predominante cultura patriarcal, pois Deus era mais pronunciado como o Deus dos pais, Abraão, Isaac e Jacó, que o Deus de Sara, Rebeca, Lia e Raquel. Desde essa época, como podemos verificar, a mulher vem sendo excluída sistematicamente de todas as decisões do poder, seja ele político ou religioso.
A grande concentração masculina e patriarcal nos textos bíblicos, tanto do Antigo como no Novo Testamento, ofusca a imagem das mulheres que aparecem politicamente ativas cumprindo papel verdadeiramente revolucionário. Infelizmente em uma organização social machista o que enraizou no imaginário coletivo, de forma devastadora, são os relatos antifeministas. Cito alguns exemplos, a criação do homem e da mulher (Gn 1, 26 - 28), aqui a anterioridade de Adão é interpretada como superioridade masculina. A origem do mal (Gn 3, 6- 7), o texto quer mostrar que o mal está do lado da humanidade e não do lado de Deus. Mas a interpretação dada é que a mulher como sexo fraco, por isso ela foi seduzida e seduziu o homem. Está escrito nesse capítulo a razão da submissão histórica e ideologicamente justificado, “... a paixão vai arrastar você para o marido, e ele a dominará” (Gn 3, 16). Dentro da cultura patriarcal, Eva (mulher) é a grande sedutora e fonte do mal.
Miriam era uma líder e uma profetiza devotada a seus irmãos e a seu povo. Como qualquer outro ser humano também tinha virtudes e fraquezas. Cuidou de Moisés e manteve-se sempre a seu lado, fosse nos momentos de festas ou nos momentos mais difíceis de tomadas de decisões a respeito da vida do povo, a conexão entre ambos era muito forte, pois ela havia moldado sua vida. Miriam fica doente é acometida pela “lepra” e Moisés, seu irmão, intercede por ela pedindo a Deus que a cure. Durante esse período, Miriam é deixada fora do acampamento, o povo em consideração e respeito e lealdade a sua líder não partiu até ela voltasse (Nm 12, 15). Miriam, enquanto ser humano viveu todos os conflitos comuns a uma mulher e uma pessoa que interage de forma política na sociedade. Teve erros e acertos, mas podemos concluir que ela foi uma mulher poderosamente usada por Deus.
Mesmo nos momentos mais difíceis, Miriam não perdeu as esperanças de que um dia Moisés libertaria o povo hebreu da escravidão. Quando Miriam morre (Nm 20,1), Moisés se sente perdido e incapaz de suportar as lamúrias do povo. Então, comete o erro que o deixa fora da Terra Prometida. Moisés precisava de Miriam, assim como Miriam precisava de Moisés, ambos consolidavam o equilíbrio necessário na condução do povo. Então, fica claro que somos todos, homens e mulheres, na verdade complemento uns dos outros.
Mas assim como Miriam, que com sabedoria soube romper com preconceitos machistas, impostos à mulher de sua época, mostrando sua capacidade de liderar, precisamos nós, romper com o antifeminismo, centrado sobre a dominação masculina, o pecado e a morte[8]. Nesse sentido, devemos propor alternativas originais e positivas que favoreça uma nova relação com a vida, o poder, o sagrado e a identidade de gênero[9]. Resgatar o matriarcado e fazer uma releitura do mesmo na perspectiva de mudança de paradigma nas relações masculino/feminino pode possibilitar um ponto de equilíbrio maior entre tais valores para os dias atuais. Para tanto, devemos desconstruir o que destrói a harmonia masculino/feminino e construir novas práticas civilizatórias e humanizadoras para ambos os gêneros.
Rio de Janeiro, 15 de Julho de 2016.
[1] Todas as citações bíblicas são da Bíblia Edição Pastoral das Edições Paulinas, SP - 1990.
[2] O termo hebreu indica a condição social de estar a margem, ou seja, marginalizado. Pois significa "gente do outro lado do rio”, isto é, do rio Eufrates. Os hebreus são povos semitas originários da Mesopotâmia que passou pela Babilônia e pela Síria, mas se estabeleceram e viveram no Oriente Médio cerca do segundo milênio a.C. e que mais tarde originou os semitas como os judeus e os árabes, mas posteriormente o termo hebreu foi associado somente ao povo judeu.
[3] Antigo Testamento ou Velho Testamento é a primeira parte da Bíblia. O mesmo é constituído por 46 livros, na versão usada pelos católicos, e por 39 livros, na versão usada pelos protestantes.
[4] Pentateuco é uma palavra grega “pentateuchos”, que significa “cinco volumes” que é usada para designar os cinco primeiros livros da Bíblia: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. O Pentateuco é chamado pelos judeus de livros da “Lei” ou Torá.
[5] Clãs é um grupo de pessoas unidas devido a um determinado grau de parentesco, definido pela descendência de um ancestral comum.
[6] Ildo Bohn Gass (Org). Uma introdução à Bíblia: Formação do Povo de Israel. Vol 2. 2ª ed – 2011.
[7] Êxodo é o nome dado para a saída de um grupo de pessoas de uma região para outra. Nesse sentido, o segundo livro da Bíblia, denominado Êxodo, conta a história sobre a fuga dos hebreus da escravidão que sofriam no Egito, entre 1300 e 1250 a.C. O protagonista das narrações é Moisés, que teria liderado o povo hebreu de volta à Canaã, a “Terra Prometida”.
[8] Boff, Leonardo. A porção feminina de Jesus. Disponível em: www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/MA/article. visitado em: 11/7/2016.
[9] Na sociedade, identidade de gênero se refere ao gênero em que a pessoa se identifica, como sendo um homem, uma mulher ou se ela vê a si como fora do convencional, mas pode também ser usado para referir-se ao gênero que certa pessoa atribui ao indivíduo tendo como base o que tal pessoa reconhece como indicações de papel social de gênero (roupas, corte de cabelo, etc...).
[i] Professor, Especialista em Educação e Poeta. Membro do CEBI-RJ/Sub-regional Campo Grande.