Alberto,
meu amigo Guarani.
Tenho um amigo índio.
Jamais pensei, um dia, conhecer um índio de verdade. Sempre achei que os índios
morassem escondidos nas florestas, andassem nus, com seus corpos pintados e
enfeitados com penas coloridas, inclusive, na cabeça. Tomassem banho nos rios,
comessem frutas e alguns animais que porventura caçassem, com seus arcos e
flechas. Passassem os dias dormindo em redes, não trabalhassem. Resumindo,
vivessem do que lhes oferecesse a bondosa natureza.
Minha avó me dizia, assim
como outros adultos da minha família e até mesmo alguns professores na escola,
que os índios são violentos, comem gente, têm canelas finas, característica de
gente preguiçosa, rouba as coisas dos outros, brigam por causa da terra, mas
não produzem nada, e vivem atrapalhando o progresso do país. Ou seja, cresci
ouvindo esses comentários preconceituosos sobre os índios e vendo as imagens
negativas das ilustrações nos livros de história.
Acreditei, inclusive, que
os Bandeirantes foram heróis, também da forma como via e lia nos livros, não
podia pensar diferente. Mas agora, por meio do meu amigo índio, fico sabendo
que existe outra versão para essa história. Segundo ele os bandeirantes foram
homens maus, contratados pela Coroa Portuguesa no princípio da colonização do
Brasil. De início, visavam à captura dos índios para utilização da sua mão de
obra nas plantações. Tempos depois o objetivo era o de capturar negros escravos
fugitivos e dominar indígenas rebeldes. Esses homens, que eram em sua maioria
paulistas, além de atuarem na captura de escravos e assassinatos de indígenas,
atuaramambém na procura de
pedras e metais preciosos pelo interior do Brasil.
Perguntei a Alberto,
como você sabe disso tudo? Alberto é o nome do meu amigo índio, é como ele foi
registrado oficialmente na língua portuguesa. Mas ele me disse que os índios
têm também um nome indígena, no caso dele, por ser Guarani, seu nome indígena
foi dado durante o batismo na Opy -
Casa de Reza, quando
ele tinha um pouco mais de um ano de idade. Ele me disse que o nome é escolhido
de acordo com a personalidade e as virtudes que vão despontando na criança no primeiro
ano de vida. Nossa! Escolher o nome desse jeito me parece muito legal!
Alberto me contou que as
crianças indígenas aprendem muitas coisas com seus pais, normalmente com a mãe
e com os mais velhos da aldeia, por meio da oralidade.
Aprendemos também na escola, disse ele frisando bem, na escola indígena atual.
Quis saber o porquê disso e ele me explicou dizendo que nos primórdios da
educação indígena os missionários Jesuítas a utilizavam como instrumento de
aculturação e aniquilamento das comunidades indígenas. A educação para os
índios era na verdade uma doutrinação religiosa.
Já a escola atual, pelo menos no papel, tem perfil diferente, das escolas não
indígenas, ou seja, é Intercultural, Bilíngue, Especifica e Diferenciada e a
formação do professor indígena também segue a mesma linha. É Intercultural
porque os saberes tradicionais precisam estar em contato com os saberes
escolares do sistema nacional; Bilíngue, devido cada etnia ter sua língua materna
e a língua portuguesa como segunda língua; Específica, porque existe uma escola
específica para cada etnia e esse professor também é especifico; diferenciada,
porque a escola Guarani, por exemplo, é diferente da escola Pataxó, pois suas
tradições são diferentes, sendo assim, o currículo é diferenciado e deve ser
trabalhado de acordo com a cultura local.
O nome indígena do meu
amigo Alberto é Tuparay ou na língua
Guarani, Tupã Ra’y que quer dizer,
“Filho de Deus" ele me contou que a etnia Guarani vive espalhada por todo
o Brasil, além de alguns outros países da América Latina. Aqui, no nosso país,
os Guarani estão localizados em alguns estados, entre eles, o do Espírito
Santo, onde mora parte de sua família. Disse-me que os Guarani são divididos em
grandes grupos, como por exemplo, o Mbyá,
o Kaiowá, o Nhandeva, entre outros. Há também diferentes grupos dentro de
outras etnias, com variações linguísticas e culturais entre eles. Nesse
sentido, o meu amigo é mestiço dentro da sua própria etnia, ele é Mbyá, mas seus pais são de grupos
distintos. Então, os índios não são todos iguais, como sempre pensei.
A palavra índio, diferentemente do que muitos
pensam, tem sua origem, na Europa do período que compreende a Idade Média, o
termo aplicava-se não apenas aos habitantes da região hoje conhecida como
Índia, mas também a todas as regiões desconhecidas. Segundo os relatos das
viagens, no tempo das grandes navegações, quando alguns países da Europa, entre
eles Portugal, quis expandir seus domínios territoriais, consequentemente
econômicos, saiu em busca de terras e ouro no novo continente “descoberto” por
Cristóvão Colombo, do outro lado do oceano Atlântico. Por estarem em terras
desconhecidas, os nossos colonizadores chamaram de forma genérica, por uma
questão lógica da época, os nativos de índios. A palavra índio, então, é um
coletivo que representa o conjunto dos nativos que já viviam aqui muito antes
dos colonizadores europeus chegarem ao novo mundo, antes mesmo dessas terras
serem chamadas demérica.
Desde o século XVI até a
década de 70 do século XX, a população indígena brasileira decresceu
acentuadamente e muitos povos foram extintos. O desaparecimento dos povos
indígenas passou a ser visto como uma contingência histórica, algo a ser
lamentado, porém inevitável. No entanto, este quadro começou a dar sinais de
mudança nas últimas décadas do século passado. A partir de 1991, o IBGE
incluiu os indígenas no censo demográfico nacional. O contingente de
brasileiros que se consideravam indígenas cresceu 150% na década de 90. O ritmo
de crescimento foi quase seis vezes maior que o da população em geral. O
percentual de indígenas em relação à população total brasileira saltou de 0,2%
em 1991 para 0,4% em 2000, totalizando 734 mil pessoas. Houve um aumento anual
de 10,8% da população, a maior taxa de crescimento dentre todas as categorias,
quando a média total de crescimento foi de 1,6%.
Em 2010, de acordo com
Censo Demográfico, divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística – IBGE, que contabilizou a população indígena com base nas pessoas
que se declararam indígenas no quesito cor ou raça e para os residentes em
Terras Indígenas que não se declararam, mas se consideraram indígenas. Das 896
mil pessoas que se declaravam ou se consideravam indígenas, 572 mil ou 63,8 %,
viviam na área rural e 517 mil, ou 57,5 %, moravam em Terras Indígenas
oficialmente reconhecidas.
Alberto me disse que sua
aldeia fica numa região litorânea do Espírito Santo, num Município chamado
Aracruz, terras ocupadas há muitos anos pelos índios Tupiniquim e Guarani, e
que os mesmos vêm sofrendo, desde a década de 60, com a redução, considerável,
das suas áreas habitadas, com a derrubada das matas, consequentemente,
diminuição da fauna, que sempre contribuiu de forma alternativa para a
alimentação. Tudo isso, devido à expansão das plantações de eucaliptos para
extração da celulose, matéria prima utilizada na produção de papel, pela
empresa Aracruz Celulose. Gerando conflitos pela posse das terras na região.
Os conflitos de terra no
Brasil vêm desde a ocupação pelos portugueses nos idos do século XVIassando por três períodos bastante
distintos: Colônia, Império e República. Cada um desses períodos tem suas
peculiaridades que no final convergem sempre para a consolidação do poder,
conforme podemos observar na nossa história política, econômica e social. Em
cada um desses períodos há um tratamento diferenciado, principalmente para os
nativos, que varia segundo os interesses dos grupos políticos que porventura
estivessem à frente do poder e a partir daí influenciavam de alguma forma as
leis que tratavam das questões relacionadas, particularmente, às terras.
Durante o Brasil colônia,
somente com o Alvará Régio de
1º de abril de 1680, proibindo a escravidão de índios no Brasil, é que Portugal
reconheceu que se deveria respeitar a posse dos índios sobre suas terras, por
serem eles os seus primeiros ocupantes e donos naturais. A partir da
instituição das capitanias hereditárias foi inserido o sistema de sesmarias,
já que se tratava de grandes áreas de terra seria melhor dividi-la em partes
menores para facilitar o trabalho. Essa divisão era feita tanto pelo governo
quanto pelos donatários e, mesmo assim, as terras eram abandonadas ou
devolvidas ao governo. Isso nos induz a pensar na lógica que não adiantava ter
as terras se não havia “índios escravos” para trabalharem nelas. Essa
conjuntura social só vai mudar com a instituição do negro escravo no Brasil.
No Brasil Império a
situação não é muito diferente, a legislação se dá por meio do Decreto de
número 1.318, de 30 de Janeiro de 1854, que regulamenta a primeira lei imperial
número 601, de 1850, que tratou de regulamentar a propriedade privada no
território brasileiro e assegurou o direito territorial dos índios nos Artigos 72
e 75, reservando terras para a sua colonização. E já no Brasil República a
legislação se dá por meio da Constituição Federal, ou seja, por um conjunto de
leis, normas e regras que regulam e organizam o funcionamento do Estado. Ao
longo da nossa República tivemos seis constituições: a primeira em 1891, dois
anos após a Programação da República e a atual que foi promulgada pela
Assembleia Constituinte no ano de 1988.
O importante é perceber
que para os povos indígenas, a terra é muito mais do que um meio de
subsistência, não é apenas um recurso natural, a terra representa o suporte da
vida social e está diretamente ligada às crenças e ao conhecimento. Embora os
índios detenham a posse permanente e o "usufruto exclusivo das riquezas do
solo, dos rios e dos lagos" existentes em suas terras, conforme o
parágrafo 2º do Art. 231 da
Constituição, elas constituem patrimônio da União. E, como bens públicos de uso
especial, as terras indígenas, além de inalienáveis e indisponíveis, não podem
ser objeto de utilização de qualquer espécie por outros que não os próprios
índios.
Alberto me contou que os
Guarani vivem em busca da Terra sem Mal, uma espécie de paraíso, o lugar
perfeito, sem doenças, morte ou guerra. Esse paraíso mítico é parte da crença
religiosa do seu povo. Para encontrar a
Terra sem Mal, eles estão sempre em caminhada. Para eles não existem fronteiras
ou mesmo cercas determinando limites territoriais. A terra é uma só e para
todos. No passado longínquo, disse-me ele, era mais fácil ir à busca da Terra
sem Mal, hoje em dia esse deslocamento é bastante limitado devido às muitas cercas
de arame das grandes fazendas e a falta de conhecimento dos brancos sobre a
cultura do seu povo. Mas não basta apenas encontrar o lugar certo, pois, é
necessário que haja um relacionamento de respeito à natureza, aos animais, às
plantas e às outras pessoas da comunidade, aí sim poderão alcançar a Terra sem
Mal.
Meu amigo Guarani me convidou para conhecer sua aldeia, ele me
disse que vou adorar, já que sou interessado em ciências. Lá terei a
oportunidade de conhecer um pouco da ciência indígena e perceber que eles
possuem uma ciência própria que muitas das vezes encontra-se de acordo com as
várias etnias existentes. Por exemplo, a Astronomia, orienta suas atividades de
sobrevivência como a de todos outros povos, o tratamento de todos seus males
sempre se deu utilizando recursos naturais extraídos das florestas como raízes,
flores, folhas, cascas e sementes, a alimentação que, em geral, é variada e
equilibrada dentro das possibilidades oferecidas pelo bioma
onde vivem.
Segundo Alberto, eles têm um jeito próprio de preparar seus
alimentos, a carne de peixe ou de caça é a principal fonte de proteínas e podem
ser cozidos, assados ou defumados, as frituras não têm espaço no cardápio. As
mulheres indígenas, pelo menos duas vezes ao dia, se reúnem para compartilhar
os alimentos, cada uma delas leva a comida já pronta e as pessoas sentadas
esperam ser servidas pelos mais jovens da comunidade, numa demonstração de
união e forma de garantir que todos possam comer daquela comida. As frutas são
as mais diferentes que eu já tenha ouvido falar. Mas, no fundo, disse meu
amigo, mais do que fonte de energia, os alimentos são parte da nossa cultura.
Mas o melhor mesmo é que
lá poderemos andar de bicicleta, jogar bola, ficar descalço, colher frutas no
pé, montar armadilhas, nadar e pescar, ouvir o canto dos passarinhos, escutar
as histórias do pajé e comer typa,
preparado na hora do café da manhã.
Rio
de Janeiro, 14 de abril de 2016.
[1] Alberto Alvares pertence a etnia Guarani – Mbyá. Saiu do Mato Grosso do Sul, passou pelo Espírito Santo e de lá para o Rio de Janeiro. Estudou na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ. Alberto é Professor de Lingua Guarani na Universidade Federal Fluminense – UFF e Cineasta da Nhamandu Mirim Produções da Universidade Federal de Minas Gerais.
Os
índios dão muito valor na palavra, pois promove a interlocução, exercita a
memória, prepara argumentos, fortalece os vínculos, na verdade estimula duas
capacidades que são ouvir e falar. Entre os índios, tanto a mulher quanto os
mais velhos têm papéis de destaque, pois são responsáveis pela manutenção da
oralidade. Por elas são transferidos os ordenamentos da boa relação na
comunidade, restando aos mais velhos a transferência da memória. Na sociedade
indígena a pedagogia da oralidade precede a pedagogia da leitura e da escrita,
pois entre eles a comunicação é parte de um estratégico código de
sobrevivência. Registrar para muitos, até aos dias de hoje, é disponibilizar
intimidade. Apesar de a escola ser bilíngue, as crianças guaranis, por exemplo,
só aprendem o português depois dos sete anos para garantir que terão a língua
mãe reforçada. Também não são apegados à escrita. A oralidade é a marca mais
forte. Tudo que é feito na aldeia é baseado no diálogo. A proposta pedagógica é
levar a escola para a comunidade e levar a comunidade para dentro da escola.
A
catequese para os índios tinha por princípio torná-los gente, por meio de uma
doutrina de acordo com o pensamento do homem europeu. Saindo do campo da
dominação religiosa e passando para o de dominação político-ideológico.
O
princípio dos direitos indígenas às suas terras, embora sistematicamente
desrespeitado, está na lei desde pelo menos a Carta Regia de 30 de julho 1609.
O Alvará de 1° de abril de 1680 afirma que os índios são "primários e
naturais senhores" de suas terras, e que nenhum outro título, nem sequer a
concessão de sesmarias, poderá valer nas terras indígenas (CUNHA, 1994, p.
127).
Sesmarias foi um sistema criado em Portugal em 1375,
tinha como objetivo desenvolver a agricultura que se encontrava abandonada em
virtude das batalhas internas e da peste negra. Foi adotado no Brasil no
período colonial devido à prática comum de devolução ou abandono da terra.
Segundo a Lei, se o proprietário não fertilizasse a terra para a produção e a
semeasse, esta seria repassada a outro agricultor que tivesse interesse em
cultivá-la.
[8]Art. 72. Serão reservadas as terras devolutas para colonização e aldeamento de indígenas, nos distritos onde existirem hordas selvagens.
Art. 75. As terras reservadas para colonização de indígenas, e para elles distribuídas, são destinadas ao seu uso fructo; não poderão ser alienadas, enquanto o Governo Imperial, por acto especial, não lhes conceder pelo gozo dellas, por assim o permitir o seu estado de civilização.
Art.231 -
São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças
e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente
ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os
seus bens.
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§2º - As
terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse
permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e
dos lagos nelas existentes.
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A palavra bioma (bios=vida e
oma=grupo) foi usada pela primeira vez em 1916, pelo ecologista norte-americano
Clements, que a definiu como: “comunidade de plantas e animais, geralmente de
uma mesma formação, comunidade biótica”. Ou seja, é o espaço geográfico
caracterizado de acordo com o macroclima, os aspectos da vegetação do lugar, o
solo e a altitude específicos. O Brasil, por exemplo, é formado por seis biomas
de características distintas: Amazônia, Caatinga, Cerrado, Mata
Atlântica, Pampa e Pantanal.
[i] Professor,
Especialista em Educação, Poeta e membro do CEBI-RJ/Sub-regional Campo Grande.