Religião e Política:
acreditar e praticar para transformar.
João
Crispim Victorio[i]
Do
dia em que nasci até meus dez anos de idade, mais ou menos, frequentei a
Umbanda[1], religião dos meus pais e
avós. Minha avó era a Ialorixá do terreiro, ou seja, a mãe de santo, a responsável pela feitura dos médiuns, os filhos de santo. Com eles
aprendi muitas coisas importantes relacionadas aos valores morais, aos bons
costumes e ao respeito às pessoas, principalmente com as mais velhas,
detentoras das sabedorias de vida acumuladas.
Aprendi também a respeitar os
animais, seres considerados por eles, divinos, como as plantas, que têm o poder
da cura, enfim, de modo geral, a respeitar a natureza, porque tudo é natureza e
ela provém de Deus, o Criador. Quando
me tornei adolescente, fase que na maioria das vezes perdemos o interesse por
quase tudo, comigo não podia ser diferente, aos poucos fui me afastando e, até os
meus dezessete anos, não quis saber de nenhuma religião e questionava até mesmo
a existência de Deus. Não me tornei propriamente um ateu, mas num
agnóstico teísta[2]
por acreditar, de certa forma, na existência de Deus.
Foi na minha juventude, depois de
ter vagado por uns três ou quatro anos, que tive uma reaproximação com a igreja
católica. Digo reaproximação porque, ainda quando criança, meus pais nos orientavam,
eu e meus irmãos, a fazer o catecismo na paróquia do bairro onde morávamos, posso
considerar essa como minha primeira experiência de sincretismo religioso[3]. Mas o que meus pais não sabiam
é que naquela época eu faltava mais do que comparecia aos encontros da
catequese. Quase sempre desviava o caminho da igreja, achava mais interessante
ir jogar futebol, bola de gude ou impinar pipas. Mas foi exatamente ali, na
paróquia Nossa Senhora Aparecida, que iniciei, no auge da minha juventude, a
participação na comunidade. Esta foi, para mim, uma fase muita rica e
significativa, pois foi a partir dessa experiência que pautei minha vida em
família e as ações sociais tomando por base a pessoa de Jesus Cristo.
Posso dizer, então, que toda minha formação
intelectual e de caráter têm suas origens, primeiro na família e na escola, depois
na Umbanda, religião dos meus pais e avós, e no catolicismo, minha religião por
opção, mais propriamente dentro da Teologia da Libertação[4]. Sendo assim, considero ser
importante, mas não fundamental para se viver em sociedade, a participação em
uma religião. No meu caso foi por meio da igreja católica, por exemplo, que aprendi
a participar de reuniões e de grupos; participei de cursos de formação ética,
teológica e política; aprendi a pensar no coletivo; a lutar por uma sociedade
justa e fraterna e a vivenciar minha fé[5].
Uma das primeiras coisas que compreendi iluminado
pelos Evangelhos, foi que Jesus Cristo veio para libertar os oprimidos do poder
opressor, seja ele qual for. Portanto, sendo um trabalhador assalariado,
morador da periferia, sem acesso à educação e a saúde de qualidades e tolhido
das atividades culturais e de lazer, sou um oprimido. Então precisava identificar
o poder opressor, para tanto, além da minha fé era necessário me organizar no
sindicato, enquanto trabalhador, na associação de moradores, enquanto morador
de um bairro e no partido político, enquanto cidadão consciente de seus
direitos e deveres, pois na minha concepção, a fé desprovida de ações, é morta.
Isso significa dizer que religião e política devem caminhar juntas, não falo da
religião descomprometida com o reino de Deus, nem da política determinada pelos
opressores e muito menos digo que devemos transformar as religiões em partidos
políticos ou vice-versa. Mas cada um na sua e a sua maneira podem contribuir
para que a fé oriente a prática no sentido transformador rumo à construção de
uma sociedade mais igualitária.
Mas será isso possível diante dos problemas crônicos
de corrupção que assolam toda a nossa sociedade brasileira desde a colonização,
causando divisões e mais divisões e, consequentemente, o afastamento das pessoas
das discussões e organizações políticas, ideológicas[6] e sociais? E, até que ponto tudo
isso não atinge e causa, também, divisões entre e dentro das muitas religiões
que se estruturaram no nosso país? Quem de nós já não ouviu a máxima que
política, religião e futebol não se discutem? Isso, na verdade, têm
consequências drásticas, pois causa um dos piores problemas, já que vivemos uma
democracia representativa[7], o desinteresse pelo processo
político-partidário e por fim, das eleições. Quando deixamos de conhecer os
partidos políticos e a ideologia que representam, fica parecendo que todos os
partidos são iguais, sendo assim, pela lógica, todos os políticos também o são.
Mas esse é um pensamento simplista e, por isso, errado e vai se solidificando
cada vez que alguém diz não querer se meter com política, aí faz como Pilatos lava
as mãos deixando que outro decida por ele. O pior é que muitas das vezes não
percebemos e somos enganados pelas mídias, aparentemente se mostram neutras, só
que não existe, politicamente falando, ninguém neutro todos defendem interesses
próprios.
Acredito que tudo isso pode mudar, que ainda tem
conserto. Somos um país ainda novo, em relação aos países da Europa, por
exemplo, estamos em construção e cada tijolo colocado é importante, temos
nossos ideais e esperanças no futuro, vivemos com vontade de acertar. A partir
do momento que cada um tome posição, deixando de pensar em si próprio, verá que
sua participação é fundamental para as mudanças sociais em direção ao reino de
Deus, perceberá que de nada adianta a fé sem ação concreta e que é necessário a
disseminação da cultura da construção no coletivo. Talvez estejamos falando de
uma situação utópica. Mas segundo o escritor Eduardo Galeano[8] (2006) “A
utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois
passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu
caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que
eu não deixe de caminhar”. Então, é isso que nos move, sendo
assim, não podemos deixar jamais que nos roubem a utopia e os sonhos que
sonhamos juntos.
Rio de Janeiro, 26 de Janeiro de 2016.
[1] A palavra umbanda é derivada de “u´mbana”,
um termo que significa “curandeiro” na língua banta falada em Angola, o
quimbundo. A umbanda tem origem nas reuniões das senzalas lá os negros escravos
vindos da África dançavam e cantavam louvando seus deuses e incorporavam
espíritos. A umbanda é uma religião brasileira formada por elementos
de outras religiões como o catolicismo, o espiritismo e juntando ainda elementos
da cultura africana e indígena.
[2] A palavra agnóstico deriva do termo grego “agnostos” que significa
“desconhecido", "não cognoscível”. O agnóstico é aquele que considera
os fenômenos sobrenaturais inacessíveis
à compreensão humana. Os agnósticos consideram inútil discutir temas
metafísicos, pois são realidades não atingíveis através do conhecimento. Para
os agnósticos, a razão humana não possui capacidade de fundamentar
racionalmente a existência de Deus. Um agnóstico pode ser teísta ou ateísta. O teísta admite que
não tem conhecimento que comprove a existência de Deus, mas acredita ou pelo
menos admite a possibilidade da existência de Deus. Por outro lado, o ateísta
também admite não possuir conhecimento que comprove a não existência de Deus,
mas não acredita na possibilidade que Deus exista.
[3] Etimologicamente, a palavra
"sincretismo" tem origem no grego sygkretismós, que significa
"reunião das ilhas de Creta contra um adversário em comum", traduzido
para o francês syncrètisme, deu origem à variante na língua portuguesa,
que significa a fusão de diferentes
doutrinas para a formação de uma nova, seja de caráter filosófico,
cultural ou religioso. No caso do sincretismo religioso é a mistura de uma ou
mais crenças religiosas em uma única doutrina. No Brasil o sincretismo
religioso nasce a partir dos colonizadores portugueses, dos escravos africanos
e da população indígena.
[4] A Teologia da Libertação é um movimento teológico cristão que nasceu na
América Latina, depois do Concílio Vaticano II e da Conferência de Medellín na
Colômbia em 1968. É um movimento que não se vincula a nenhum partido político,
mas pensa em uma teologia que possa influenciar a política, de acordo com os
ensinamentos e o projeto de Jesus Cristo de libertação das opressões
econômicas, políticas ou sociais. A Teologia da Libertação tem caracteristicas
básicas como a negação da esperança transcendente, o reino de Deus é para a
imanência deste mundo e considera o
pobre, não um objeto de caridade, mas sujeito de sua própria libertação. A
Teologia da Libertação foi e continua sendo a reinterpretação analítica e
antropológica da fé cristã, em vista dos problemas sociais existente em
particular na America Latina.
[5] A palavra fé significa "confiar",
"acreditar" em algo ou
alguém, ainda que não haja evidências que comprove veracidade. De acordo com a
etimologia, a palavra fé tem origem no Grego "pistia" que indica
a noção de acreditar e no Latim "fides", que remete para uma
atitude de fidelidade. Para nós cristãos ter fé implica crer na Bíblia e nos
ensinamentos de Jesus Cristo, o enviado de Deus.
[6] Segundo o Dicionário
da Língua Portuguesa Larousse, Ideologia é um conjunto de ideias, crenças,
doutrinas próprias de uma sociedade ou classe social. Sendo assim, a ideologia pode estar ligada a ações políticas, econômicas e sociais. O termo ideologia foi muito usado
pelo filósofo Antoine Destutt de Tracy e o conceito de ideologia foi bastante
trabalhado pelo filósofo alemão Karl Marx. De acordo com Marx, a ideologia da
classe dominante tinha como objetivo manter os mais ricos no controle da
sociedade.
[7] Democracia representativa ou democracia indireta é uma forma de governo em que o povo elege
seus representantes para defender e executar os seus interesses. A principal base da democracia representativa
é o voto direto no candidato considerado mais apto para exercer o cargo pleiteado.
O Brasil
é governado sob o regime de democracia representativa, com voto obrigatório.
Somos uma república democrática, elegemos nossos representantes para Presidente
da República, governadores, senadores, deputados, vereadores, prefeitos.
[8] http://www.espacoacademico.com.br/056/56andrioli.htm